18/02/2017

Da Mudança

O amor e a sua prática parece, nos tempos recentes, ter passado para a cozinha. Não, não falo de The Posman Always Rings Twice (1981) em que Jessica Lange e Jack Nicholson fazem da cozinha palco para matar a sua sede.
Falo das frases que agora mais se ouvem e leem em todo o lado sobre a aliança ‘cozinhar’ e ‘amor’; assim estamos perante uma verdade insofismável que assenta em expressões: como ‘cozinhar com amor’, ‘cozinhar é dar amor’, ‘a comida deve ser preparada com amor’. 

A comida e o amor de mãos dadas. Elevou-se tanto quanto seria possível (será?) o que se come, da esfera de uma aconchegante satisfação de uma necessidade biológica, para a esfera dos chamados afectos, e do amor. A nossa medida do amor hoje passa pela cozinha. Mais um trabalho, mais uma responsabilidade, mais motivos para ‘culpas’ (essa coisa que funciona em banho-maria e em lume brando) várias que se queiram inventar. 

Ora eu gostaria de saber como é que se mantém a chama (é suposto o amor ter chama, não é? “arde sem se ver” dizia o poeta) quando todos os dias, mas todos os dias que Deus fez, e sem falha, se tem de comer, e se tem de pensar no que se vai comer, e no que, de manhã à noite, se vai cozinhar. É assim que se alimenta uma família, não é? Só este pensar, planear, comprar, já deveriam ser prova de amor suficiente, creio. Mas não é, desenganem-se: há que cozinhar, e fazê-lo com amor. Ao longo de anos tenho cozinhado muito, por obrigação quase sempre, mas muitas vezes com gosto, sobretudo porque depois comia o que cozinhava e gostava. Agora chamam a isso amor. 

Acontece que recentemente, em tempos de mudança, não me apetece cozinhar, menos ainda pensar no que cozinhar. Arranjo artefactos para – mantendo alguma integridade dos ingredientes – cozinhar o menos possível. Devo preocupar-me?

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