10/01/2017

Literacia Emergente (2)

Se o Perfil de Canal da Antena2 nos garante tratar-se de uma “rádio essencialmente musical” afirma no que parece um contra-senso que “uma parte importante da programação é dedicada a outras áreas culturais incluindo literatura, ciência, dança, cinema e artes plásticas”. Não sei se consigo descodificar este fenómeno de algo ser essencialmente uma coisa, e ao mesmo tempo uma importante parte do que é, ser outra coisa distinta. Terei que deixar isso para os estudiosos da lógica: essa equação escapa-me.


E qual é a parte importante (aquela que não é “essencialmente musical”)? É a parte da programação dedicada a outras áreas culturais incluindo literatura, ciência, dança, cinema e artes plásticas. E como é que isto se faz em rádio? Através da divulgação (aquela ladainha de que falei anteriormente), da entrevista, da conversa, da discussão, do debate. “Pela estação passam os principais criadores das diversas artes, em entrevistas pontuadas por música e atualidade” e sobre essa “parte importante”, mas não “essencialmente musical”, nada mais é dito.

Mas é ouvido, e eu tenho ouvido. Tenho ouvido programas em que se entrevistam historiadores e outros convidados que falam sobre o seu trabalho (um livro que saiu, uma investigação científica inovadora, etc). Ouvi com gosto alguns deles, nomeadamente algumas entrevistas no âmbito da Folio 2016 (apesar de haver excitação e ruído a mais para um directo radiofónico) e dois programas (de 3 ou 4 creio) de uma Professora/investigadora de História que escreveu sobre o reinado de D. João II, e participou em vários programas em forma de entrevista. O meu azar foi ter ouvido um deles duas vezes, e não os ter ouvido todos seguidos na sequência lógica. Ouvi outros (sempre neste registo de entrevista) por exemplo, sobre robótica, ou mais recentemente sobre o Abade de Priscos. Estes dois últimos eram francamente menos interessantes e creio que 15 minutos seriam amplamente suficientes para dizer o que há a dizer, sem que o ouvinte se farte. A duração das entrevistas, o tempo que dura o programa (lá se vai o “essencialmente musical” que define o Canal) e as suas repetição, são o problema para quando se ouve a Antena2 com regularidade. Numa semana, já há uns meses, consegui ouvir três vezes o mesmo programa sobre robótica!

No entanto estes programas são francamente mais interessantes do que outros de conversa a que chamam: Um Certo Olhar, “uma janela sobre o mundo das ideias”  em que três ou quatro pessoas conversam sobre (presumo) as ditas ideias, coisas vagas e generalidades, e estão quase sempre de acordo explicando-se e rindo em cumplicidade. Um café entre amigos (um chá entre amigas) traz mais emoção e polémica do que estes programas em que nos sentimos voyeurs numa conversa que não nos diz respeito, nem nos interessa e em que de facto nada se aprende. Poder-se-ia pensar que era um debate, e muitos chamarão ‘debate’ a essa coisa morna porque não sabem a diferença entre conversar e debater...

Aliás em Portugal não se sabe fazer debate, não se cultiva – à moda anglo-saxónica – o contraditório. Não se sabe defender opiniões diferentes, sem que se pessoalize imediatamente qualquer tomada de posição. Discordar não é celebrado como um momento de liberdade, um valor que Mário Soares ajudou a cimentar em tanta gente da minha geração (e fica a minha referência a Mário Soares feita) pois é tido como um desplante, uma ousadia, ou mesmo uma ofensa ao ‘bom ambiente criado entre todos” (as if...). Assim de palmadinha nas costas em palmadinhas nas costas, assistimos à dita “janela sobre o mundo das ideias” em que basicamente todos concordam (ou vagamente acrescentam algo ou ajustam posições) nas mesmas ideias, com bem menos entusiasmo do que aquele com que o Rapaz contempla uma manada de vacas a pastar.

Continuando a analisar o Perfil do Canal detenho-me nestes dois pequenos parágrafos:

A Poesia é outro dos destaques regulares no canal. As Raízes como ponte para o conhecimento de outras culturas, outras músicas do mundo, figura na programação do canal. Tal como o vanguardismo da música contemporânea. 

Programas de autor que rasgam horizontes peculiares e alternativos. Da música ambiental, à new age e eletrónica. Os passos perdidos da criação musical, com escolhas e ângulos improváveis, desde o canto gregoriano à pop experimental
”.

A poesia está presente sim, regularmente ao longo do dia e, para nosso bem, são momentos curtos. Mas “as Raízes como ponte de conhecimento de outras culturas, outras músicas do mundo”, credo! São exactamente o quê as raízes? De quê? As da Poesia? as da Música? Ou as do “conhecimento em geral”? (ver Post anterior). Porque é que teimam em escrever coisas que não querem dizer nada?

Mas não ficam por aqui: prometem-nos “Programas de autor que rasgam horizontes peculiares e alternativos”. O rasgar de horizontes ainda aguento, mas o “peculiares e alternativos” é o quê? Adjectivos a mais é, seguramente. E que dizer dos “passos perdidos da criação musical com escolhas e ângulos improváveis? Se a criação musical ficou pelos passos perdidos, não seria melhor deixá-la lá... digo eu. E o que são “ângulos improváveis” na criação musical? Relembro que logo no início nos prometem um “canal essencialmente musical, divulgando sobretudo música erudita”, isso não basta?


Como continuo sem perceber o que é afinal a Antena2, e a quem se dirige, e na esperança de aumentar o meu “conhecimento em geral”, e para que, finalmente, se perceba como chego ao título dado a esta série de posts continuarei este tema.

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